Foto arquivo pessoal: Canil Serra da Bocaina
Foto arquivo pessoal: Canil Serra da Bocaina
Cachorros e homens vivem juntos há pelo menos 12
mil anos, numa relação contínua que se revelou
benéfica para as duas espécies. Sem a proteção do
homem, dificilmente o cão teria chegado aos dias
atuais. Não era um predador de sucesso. Mas
revelou-se brilhante no poder de transmitir conforto e
confiança aos seres humanos – e de acompanhar as
mudanças de seus hábitos e valores.
O bicho ganhou um papel afetivo que antes era
desempenhado por parentes e vizinhos. Agora, o
poder de adaptação dos cachorros está novamente
em teste. Pessoas que não querem comer carne – por
implicar a morte de um outro ser vivo – estão
impondo a seus cães domésticos dietas vegetarianas
ou veganas, ainda mais radicais. Os veganos não
comem nenhuma espécie de proteína de origem
animal, como leite.
Aplicar esses valores aos animais de estimação
representa, para muitos, uma manifestação de
respeito. Mas obrigar cães e gatos a viver de vegetais
e passar o dia sozinhos dentro de apartamentos
representa uma prova de carinho?
A treinadora de animais Ana Aleirbag, de 22 anos, não
come um único pedaço de carne desde 2007. Nem ela
nem seus seis cães. Ana estendeu aos bichos de
estimação a dieta vegetariana que adotou para si
mesma, na mesma época. “Era incoerente eu não
comer carne e dar uma ração com restos de
cadáveres para minha melhor amiga”, diz, referindo-
se a Fly, uma cadela da raça border collie de 5 anos.
“Consultei o veterinário, planejei a transição alimentar
e nenhum deles estranhou a mudança.”
Eles obviamente não teriam meios de se queixar, mas
é provável que adoecessem se a troca de dieta fosse
muito nociva. Ana serve uma porção de
ração vegetariana misturada a frutas. Em horário
alternado, dá leite de vaca, iogurtes e queijo branco –
fontes de cálcio e proteína animal.
O desenvolvedor de software curitibano Anderson dos
Santos, de 27 anos, foi além. Impôs a sua vira-lata
Cindy uma alimentação vegana – ou seja,
inteiramente à base de vegetais, sem nenhuma
proteína de origem animal. “Não tinha cabimento
causar sofrimento a um bicho para alimentar outro”,
diz Santos. Isso foi há cinco anos. Hoje tem outros
dois cães veganos. Para propagar a filosofia, traduziu
para o português o livro Cães veganos: nutrição com
compaixão, do veterinário e pesquisador James
O’Heare. “Hoje, eu mesmo fabrico a ração caseira
com suplementos de cálcio, vitamina B12 e zinco”,
afirma Santos.
O mais famoso cão vegano do mundo
foi a cadela Bramble. Quando morreu, em 2003, ela
somava 27 anos e 11 meses de vida – o terceiro cão
mais longevo registrado pelo Guinness book.
Alimentava-se de uma pasta com arroz integral,
lentilhas e vegetais orgânicos. Sua dona, a inglesa
Anne Heritage, de 52 anos, é vegana radi-cal. “Ela
viveu feliz”, disse na ocasião da morte.
Mas, esperem um pouco – não há algo de estranho
nessa aparente normalidade? Cães pertencem, por
definição, à ordem dos carnívoros – junto com os
felinos. O poodle cheiroso que dorme no sofá da sala
é geneticamente da mesma espécie do lobo
selvagem, que se alimenta de carne. Aquilo que se
chama erroneamente de Canis lupus familiaris, o cão
doméstico, é uma invenção humana sem
correspondência exata na natureza.
Cientificamente, só há o Canis lupus, que se
apresenta em vários formatos. Todos eles são
carnívoros. Transformá-los em onívoros como nós,
criaturas que comem de tudo foi o primeiro passo da
humanização alimentar desses animais. Torná-los
vegetarianos, e, agora, veganos, apenas aprofunda o
fenômeno conhecido como antropomorfização – a
compulsão de imputar atitudes e sentimentos
humanos ao que nos cerca no mundo natural. No
passado, fizemos isso criando deuses com
características humanas. Agora, humanizamos os
cachorros.
“Todo dia alguém me pergunta ‘Como alimentar meu
animal sem carne’”, diz Andrew Knight, veterinário,
especialista em bioética e pesquisador do Centro
Oxford para Ética Animal. Andrew mantém um site
em cinco línguas sobre o tema (vegepets.info), com
mais de 5 mil acessos diários – só do Brasil são
registradas 800 visitas por semana.
O hábito de alimentar animais com vegetais começou
nos Estados Unidos, no fim dos anos 1960. Grupos de
veganos radicais passaram a considerar natural
alimentar seus bichos de estimação com sua própria
dieta – impondo a criaturas irracionais uma interdição
ética ou religiosa essencialmente humana. Como
outros orientalismos, esse também é uma
invenção que nada tem a ver com a religião ou a ética
originais.
Na Índia, berço das crenças hinduístas abraçadas no
Ocidente, cães e gatos não são tratados com cuidados
humanos. “Algumas tradições hindus os veem como
animais impuros. São maltratados mesmo”, diz o
paulistano Erick Schulz, diretor do Instituto de Cultura
Hindu Naradeva Shala, em São Paulo. “Lá tem
veterinário para cavalo e para elefante, mas são raros
os veterinários que atendem cães e gatos.”
Os cães e os gatos da Índia comem carne à vontade,
embora a população de religião hinduísta não coma.
“A cultura hindu respeita o animal como realmente é:
se ele é carnívoro, come carne, se não é, não come”,
diz Schulz.
A dieta vegetariana para cães e gatos tem fortes
opositores – mesmo entre vegetarianos. Presidente
da Sociedade União Internacional Protetora dos
Animais (Suipa), com sede no Rio de Janeiro, Izabel
Cristina Nascimento tem 60 anos e não come carne
desde os 18. Nem por isso acha razoável impor sua
dieta a um cão. “Como posso levar meu cachorro a
comer cenoura e soja? O animal tem o dente canino
mais acentuado justamente para comer carne”, diz
ela.
Aulus Cavalieri Carciofi, médico veterinário
especialista em nutrição de cães e gatos da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), é vegetariano
há 20 anos. Seus quatro cães, não. “Não como carne
porque não quero matar animais. Mas para conviver
com eles é preciso entendê-los”, afirma. “Se a ideia
de permitir a entrada de carne em qualquer forma em
casa é inaceitável para um vegetariano, que ele tenha
um bicho com outros hábitos. Um passarinho, por
exemplo.”
Ana Rosa Figueira